Outro dia me perguntaram por mensagem se eu já desisti de uma prova. Talvez eu passe uma imagem de mulher forte, pensei. Meu ímpeto de atleta me fez responder mentalmente “não”, porque “vencedores não desistem nunca”, mas logo caí na real. Parei, olhei pra mim e me permiti ser honesta. Sim, eu desisti do 70.3 Ironman há algumas semanas, depois de 2 anos esperando por isso. Não foi fácil me aceitar desistindo do desafio.
Ainda não sei como falar isso para meu filho, afinal nos seus 8 anos, ele já repete o que eu sempre digo para ele: “só não consegue quem desiste antes”. Mas minha mente anda me perguntando se queria mesmo conseguir fazer um meio-iron.
O peso da palavra desistir para um atleta pode custar caro, mesmo quando estamos falando de atletas amadores. Fica a impressão que se quebra a imagem de “guerreiro”, de “vencedor” e mais, de repente você pode se achar “fraco”. Não há autoajuda que tenha frase de motivação com “pode desistir…”, ou “durma enquanto eles treinam”. Somos inundados o tempo todo pelo contrário. Resiliência parece até que é só qualidade, quando na verdade, no excesso é um baita defeito.
Mas vamos lá, tem muito nó para ser desatado nesse assunto aqui. Desistir não é o fim do mundo, e arrisco dizer que às vezes, é o início de tudo.
Em 2018, eu, que quase nunca fui sedentária, já corria há 3 anos e estava indo para minha 4ª maratona quando fiz um overtraining. Hoje eu consigo enxergar que a corrida naquela época tomou um espaço muito maior na minha vida do que devia. Minha performance vinha melhorando a cada planilha, e me coloquei uma meta que custou caro. Eu estava bem cansada, dormindo mal e cheguei no ortopedista a 17 dias da prova com um hematoma no pé achando que o cadarço do tênis me apertava demais. Queria uma dica pra resolver esse “roxo” até a maratona. Passei aquele frio na briga quando ele falou em fratura, mas dei sorte, porque era “só” uma inflamação. Eu fiz de tudo, de tudo mesmo pra conseguir recuperar a tempo de largar, e assumi o risco de que 42 km correndo poderia piorar muito minha lesão. Corri com muita tensão e pouca dor. Tensa, e chorei muitas vezes. Voltei pra casa com uma medalha, uma maratona com 1h e 15 a mais do tempo que eu queria e fraturas por estresse no pé. Vivi momentos lindos nessa prova e nessa viagem, mas fiquei 3 meses sem correr nada. Foi então que comprei uma bike, voltei a nadar e virei triatleta na primeira oportunidade que pude voltar pras pistas.
Aprendi muito com esse episódio. Descobri que o limite é uma linha no escuro que você só conhece de fato quando ultrapassa. Aprendi que desistir pode ser mais inteligente do que me manter na arena lutando, quando não precisava nem nela estar.
Não gosto de dizer que me arrependi do que fiz, porque eu não teria aprendido tudo isso se não tivesse arriscado, porém, hoje é lição aprendida e preciso saber usá-la. E mais, não posso dizer que não fui avisada, porque fui. Aprendi também a ouvir o treinador com mais humildade.
Em 2019, eu estava ávida por seguir no triatlo, “isso que é desafio” – eu me repetia muitas vezes. Acordava às 4h da manhã pra pedalar na USP, pegava estrada aos sábados de manhã pra ir treinar e voltava pra minha família na hora do almoço, só que moída. Em janeiro de 2020, fiz um job extra pra pagar a inscrição do 70.3 Ironman do mesmo ano, afinal esse valor beira os dois mil reais (as distâncias são 1900m nadando, 90km pedalando e 21,1km correndo). Foram 12-15h de treino por semana por quase 3 anos, mas a pandemia deu outro final pra essa história. Fui umas das milhares e milhares de pessoas que tiveram suas provas canceladas, mas tentaram se manter em forma com aquelas loucuras de subir 20 vezes os 30 andares do prédio que moro. Foco no meio-iron. Fiz dois anos de treinos indoor, com muitos e muitos dias de mais de 3 horas pedalando no rolo. Muitos longos na esteira. Muita musculação no tapete da sala, em lives, com pesinhos feitos de sacos de arroz ou garrafas de desinfetante. Sentia-me pronta para as reaberturas, e enfim poder completar o ciclo de treinos pro meu meio-iron. Foram remarcações e reajustes de rota até que a prova ficou pra setembro de 2022.
Mas, como a vida não é linear, no final de 2021 a minha deu uma cambalhota. Ainda sem rumo, no começo desse ano de 2022, tive COVID, influenza, apoiei a recuperação cirúrgica do marido, vivi uma forte mudança de rotina do filho e da também da minha carreira profissional. Aquelas horas e horas de treinos de 2019, 2020 e 2021, com todas as demandas extras que ninguém conta, não eram mais minhas prioridades. De repente, a inscrição do 70.3 que antes era um sonho, começou a se tornar um peso. Pensamentos como “tenho que nadar”, “tenho que ir pra Romeiros”, passaram a ter um tom de obsessão na minha auto-análise.
Desistir, no dicionário: verbo transitivo indireto e intransitivo: não prosseguir em um intento, abrir mão voluntariamente de (algo); abster-se, abdicar, renunciar. Na minha vida: ato de sabedoria. Não é meu momento agora. Eu simplesmente aceitei que eu não quero mais o que outrora quis tão veementemente. Se eu quisesse, arrumava um jeito, mas eu enxerguei que não quero mais fazer isso. E apliquei aqui a lição aprendida lá em 2018: não vou forçar além do que posso entregar com felicidade. Uma experiência de estreia em meio-iron sem felicidade no processo poderia me tirar para sempre da alegria do triatlo, além do risco de me machucar fisicamente também. Já me conheço para saber que meu mantra seria algo do tipo “eu aguento mais um pouco” e rapidamente transformaria minha resiliência num problema.
Há 10 dias, respirei e apertei o “send” do email de cancelamento. Está decidido. Quando eu quiser de novo, e se eu quiser de novo, será um novo começo. Pedalar e nadar por enquanto serão atividades com tom de diversão apenas. Apaguei definitivamente do celular o despertador 4am. Desisti do meio-iron.
Pois é, não vale a pena esticar o elástico. Existem muitas razões inteligentes para se tirar um guerreiro da arena. A evolução muitas vezes está em assumir o que não somos mais, ou o que não queremos mais ser. E desistir se trona um ato de valentia. Será que esse é o segredo da longevidade?
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