Pouca coisa assusta mais um corredor do que ouvir essa frase no consultório. Para muitos, é quase uma sentença de fim de carreira esportiva, um convite direto ao sedentarismo. Como ortopedista e corredor, escuto essa queixa com frequência. Mas será que essa orientação combina com o que a literatura médica mais atual mostra sobre artrose e corrida? Ou estamos, às vezes, proibindo de correr justamente quem mais se beneficiaria de continuar se movimentando?
Artrose não é só “desgaste”
Antes de falar de corrida, vale lembrar: artrose não é simplesmente “falta de cartilagem” ou “osso com osso”.
Trata-se de uma doença articular crônica, que envolve cartilagem, osso subcondral, membrana sinovial, músculos e todo o ambiente ao redor da articulação. E, ao contrário do que muita gente imagina, o movimento — quando bem dosado — pode ser parte do tratamento, não do problema.
Hoje sabemos que permanecer parado, com medo de usar a articulação, muitas vezes piora dor, função e qualidade de vida. O sedentarismo é um fator de risco tão importante quanto qualquer radiografia “feia”.
Quando olho para os estudos que comparam corredores e não corredores, a mensagem é bem diferente daquela frase “nunca mais corra”:
– A corrida recreativa, praticada com bom senso, não aumenta o risco de desenvolver artrose de joelho em comparação a pessoas sedentárias. – Em alguns trabalhos, corredores recreacionais apresentam igual ou até menor prevalência de artrose do que quem não corre. – Em pacientes que já têm artrose leve a moderada, correr com carga controlada não necessariamente acelera a progressão da doença, especialmente quando há fortalecimento e acompanhamento adequado.
Em outras palavras: não é a corrida em si que “destrói” o joelho, mas a combinação de carga exagerada, falta de preparo muscular, histórico de lesões importantes e ausência de orientação.
Quando faz sentido pausar ou reduzir a corrida
Isso não significa que todo joelho com artrose está liberado para qualquer tipo de treino. Há situações em que faz, sim, sentido pausar a corrida ou diminuir a intensidade por um período, por exemplo:
– Dor intensa durante ou após a corrida, a ponto de alterar a marcha. – Inchaço frequente no joelho depois dos treinos. – Artrose avançada, com grande limitação de mobilidade e impacto na função diária. – Pós-operatórios recentes ou presença de outras lesões relevantes associadas (ligamentares, meniscais complexas, fraturas articulares).
Mesmo nesses cenários, a visão atual não é “proibir para sempre”, e sim tratar, reabilitar, ajustar a carga e reavaliar. Em muitos casos, o corredor volta à atividade em algum nível, ainda que com distância menor, ritmo mais moderado ou alternando com outras modalidades.
Na prática, a pergunta que mais gosto de ouvir no consultório não é “posso ou não posso correr?”, mas:
“De que forma posso correr com o menor risco e o maior benefício possível para o meu joelho?”
Alguns princípios ajudam:
1. Fortalecimento em dia Quadríceps, glúteos e musculatura do core funcionam como amortecedores biológicos. Quanto mais fortes e coordenados, menor a sobrecarga direta sobre a articulação.
2. Progressão gradual de carga Distância, pace e frequência devem aumentar aos poucos. O corpo precisa de tempo para se adaptar. Planilhas que respeitam essa progressão reduzem crises de dor e inflamação.
3. Terreno e calçado adequados Superfícies mais macias (terra batida, pista sintética, grama) costumam ser mais toleradas do que concreto puro. O tênis deve ser confortável para o corredor, com boa resposta para o seu estilo de passada — não existe um modelo mágico, existe o que funciona para aquele joelho.
4. Variedade de estímulos Alternar corrida com caminhada, bicicleta, musculação ou natação ajuda a manter o condicionamento sem concentrar toda a carga em um único tipo de impacto.
5. Monitorar os sinais do joelho Dor leve e transitória pode ser aceitável. Mas dor forte, que persiste por mais de 24–48
horas, somada a inchaço, é um sinal claro de que a dose está alta demais e precisa ser ajustada.
Conclusão: ajustar a rota, não abandonar o caminho
Para muitos corredores com artrose, a pior lesão não está no joelho, mas na relação com o próprio movimento. A frase “você nunca mais pode correr” corta um vínculo com algo que dá prazer, saúde física e equilíbrio emocional.
A boa notícia é que a ciência tem mostrado um cenário mais esperançoso: com acompanhamento adequado, fortalecimento, ajustes de carga e, principalmente, escuta atenta do corpo, é possível que a corrida continue fazendo parte da vida de quem tem artrose — ainda que em um novo formato.
Se você tem artrose e ama correr, leve essa conversa ao seu médico ou fisioterapeuta. Em vez de perguntar apenas “Posso correr?”, experimente perguntar:
“O que eu preciso ajustar para correr da forma mais segura possível no meu caso?”
Talvez você descubra que, em vez de uma linha de chegada definitiva, a artrose seja apenas um convite para correr de um jeito diferente — e, quem sabe, ainda mais consciente.
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