Antes de aprender a ler e escrever, ela já corria. Aos cinco anos, Giovanna Martins descobriu o que há 35 anos a move. Campeã cinco vezes da Maratona da Disney, recordista de várias provas, campeã Sul-americana, medalhista do Mundial de Duathlon, duas vezes melhor atleta do Troféu Brasil, há apenas três anos migrou para as montanhas e trilhas, e já é uma das melhores atletas do trail do Brasil. Faz parte da Seleção Brasileira e em junho deste ano representou o país no Mundial de Trail, na Áustria e se consagrou Top 5 das Américas. Dona de uma fé inabalável, é fã de Ayrton Senna, corre em hipnose, e tem um coração que sempre cabe mais um. Com o propósito de ajudar as pessoas em todos os lugares que passa, Giovanna tem um projeto social que atende mais de 150 crianças na região de Salto (SP) e almeja trazer uma pista escola para o Brasil. Quer chegar ao topo do Everest e sonha em fazer um Ironman. Uma vida dedicada ao esporte que Giovanna contou para a Runners Brasil, já com a malas prontas para mais uma vez levar o Brasil para as montanhas da França.
Sabine Weiler: Por que você começou a correr? Alguém te inspirou?
Giovanna Martins: Comecei a correr em 87 em uma brincadeira de criança, incentivada pelos meus pais, que foram atletas amadores. Meu pai foi do atletismo do Exército. Tudo começou quando fui com a minha irmã mais velha ver uma prova deles na USP. Quando vimos o pelotão entrando para a largada, logo falamos: ‘Vamos apostar corrida? Quando o pessoal passar aqui, a gente vai correndo atrás’. E foi o que fizemos, mas sem noção. No meio da corrida, que era de 10km, nós encontramos com a minha mãe! Quando vimos a chegada, demos um ‘sprint’ deixando a minha mãe para trás, e completamos a prova sem caminhar. (risos) Depois desse dia, meu pai viu que tínhamos talento, e começou a treinar a gente para participar de provas. Com 5,6 anos já fazíamos corridas longas. Nessa época eu usava bota ortopédica, e foi na corrida que vi uma oportunidade de trocar pelo tênis. Essa deficiência me limitou um pouco, até uma professora quando meu viu de bota, achou que eu era deficiência. Mas quando ganhei a minha primeira medalha, na Corrida Antifumo na USP, de 10km, e fui campeã na categoria infantil e a segunda entre as mulheres adultas, eu fiz questão de levar e mostrar para a minha professora que eu tinha condições de fazer atividade física.
Sabine: Como foi a mudança para o Trail Run. O que te levou para as trilhas e montanhas?
Giovanna: Descobri o trail, treinando para maratonas. O Décio Ribeiro, meu auxiliar técnico me incentivou também, acreditou no potencial que eu tinha para a corrida trail. Meus avós sempre tiveram sítio, e meu pai é formado em Meio Ambiente. Eu sempre gostei desse contato com a natureza, além da aventura, que é enfrentar uma corrida trail à noite, subir montanhas, cruzar matas fechadas. Eu falo que antes, meu maior concorrente era outra atleta, que eu olhava para trás para ver onde ela estava. Já na montanha, eu não posso olhar, senão eu caio. Então meu maior adversário na corrida em montanha é a própria natureza, e isso me apaixonou! Eu sempre gostei de codificar, calcular meu treino, e no trail a gente tem que fazer muito isso. Hoje, meu maior objetivo é colocar o Brasil nos Tops 10 do mundo trail. Vou me preparar o Mundial de 2025 e espero estar na Seleção Brasileira de novo. Na UTMB (Ultra Trail du Mont Blanc) eu quero fazer as 100 milhas, é meu grande sonho, e se conseguir, chegar entre as Top 15, posição que fecha o pódio! Espero para o ano que vem, já encarar essa prova. Esse ano serei voluntária em Chamonix, na França, na MCC (Martigny Combe) da UTMB, quero ter essa experiência de trabalhar numa prova na Europa. Eu acho que é no Trail mesmo que eu vou encerrar a minha carreira de atleta. Ainda tenho um sonho de subir o Everest, então após minha vida competitiva, o próximo foco vai ser a subida. Chegar lá em cima no topo vai ser a consagração de tudo que eu fiz na vida.
Sabine: Você é considerada uma das melhores atletas do Brasil no Trail Run. Quanto tempo foi entre o início na modalidade até essa conquista?
Giovanna: O trail eu comecei como amadora, não tinha pontuação nenhuma no ITRA (Internacional Trail Running Association), em 2020. Mas hoje, eu me considero uma das melhores atletas multiesportivas do Brasil, porque eu tive bons resultados na pista, na rua, no duathlon e hoje tenho bons resultados no trail. Essa variedade de modalidade e estar sempre entre as melhores do Brasil, acho que sou uma das únicas brasileiras. Eu corri 800 metros na pista para 2m13s, isso treinando para maratona, difícil uma maratonista fazer essa marca. Eu corri meus primeiros 100km e fiz índice para o Mundial, com 8h42m. Eu amo o esporte, então esse resultado é a consequência de toda uma dedicação.
Sabine: Qual foi o maior desafio para chegar ao topo do Trail Run?
Giovanna: Eu já tive dois grandes desafios no trail. A CCC ((Courmayeur – Champex – Chamonix) no ano passado, fiz meu primeiro 100km. Cheguei a treinar 250/300km por semana, fiquei 30 dias na França. Infelizmente tive uma inflação no seio, por causa do anticoncepcional, e a prova não foi como eu queria! Mas corri abaixo de 15 horas, foi a melhor pontuação do Brasil, dos últimos tempos nos 100 km com a altimetria de 6.000m. Já o maior nível de competição que eu participei, foi o Mundial na Áustria (junho/23). Uma prova de grau superdifícil, montanhas com inclinação de 45%. A prova de 87km teve uma média de 18.5% de inclinação e 6.500m de altitude. Eu fui a 35ª do mundo. Eu saí de 86 no ranking do mundial para 35 sendo, a primeira Sul-americana, e a Top 5 das Américas. Então para mim foi um resultado espetacular. Até porque esse ano iniciei com provas mais curtas. Mas 45 dias antes do Mundial, quando recebi a notícia, eu me dediquei muito, aumentei o volume, a altimetria e encarei. Então pelo tempo que eu tive, não ter treinado em altitude, e eu senti muito na primeira subida que chegou a 2.900m, mas eu estava muito bem psicologicamente. No final eu fui crescente na prova e passei muitos atletas. O Mundial deixou aquele gostinho de quero mais, para tentar buscar um bom resultado em 2025.
Sabine: Quando você decidiu entrar para o Trail Run, já tinha como objetivo ir para um Mundial, ou foi descobrindo esse sonho com os treinos e provas, e seu desempenho nas montanhas?
Giovanna: Meu objetivo desde o início foi participar de um Mundial, mas eu sabia que seria difícil chegar, que eu ia ter que passar por toda essa transformação. Eu tive que entrar no ITRA como amadora, não tinha pontuação nenhuma, mas com a minha evolução, cada vez mais, fui acreditando que eu ia estar no Mundial.
Fotos: Arquivo pessoal Giovanna
Sabine: Como foi a experiência de participar do Mundial na Áustria, no mês de junho? Como é representar o país numa competição mundial?
Giovanna: Foi a coroação de todo trabalho que venho tendo desde 2020, de ter migrado da rua para o trail. É coroar a dedicação de todos os meus apoiadores desse projeto, do meu marido que me incentiva muito. Então passou um filme quando eu coloquei a camisa do Brasil de novo! Eu já tinha integrado a Seleção Brasileira duas vezes em Sul-americanos e em dois GPs, mas fazia tempo, então foi muita emoção. Eu chorei a abertura inteira. Eu queria ir buscar um bom resultado para o Brasil, estar entre as 40 melhores no mínimo, mas sabia que o nível era muito forte. Eu era uma das poucas do mundial e acho que a única do Brasil, que não moro numa cidade de montanha. Então meus treinos são muito adaptados, não tem altitude. Isso me dá mais motivação, mais orgulho, me desafia cada vez mais a buscar o resultado. Eu dei tudo o que tinha naquele momento.
Sabine: Qual foi a sua conquista mais significativa até agora e por que ela é especial para você?
Giovanna: As cinco vitórias na Maratona da Disney. Essas conquistas foram me projetando no esporte. Já sou atleta há 35 anos, já tinha vencido o Sul-Americano, tinha sido medalhista no GP Internacional, duas vezes melhor atleta do Troféu Brasil, mas a Maratona da Disney me destacou muito. Uma prova de muita visibilidade. E claro, o Mundial, por eu ter 45 dias para me preparar, ter enfrentado as melhores atletas do mundo, e ter ganhado de muitos atletas que vivem na Montanha. Na Europa o Trail é supervalorizado.
Sabine: Quais são os aspectos mais difíceis de competir em corridas de trail run?
Giovanna: A maior dificuldade é a questão da logística, de morar numa cidade onde não tem montanha. Então quando chega mais próximo das provas, eu tenho que viajar para treinar, acordo às 3 horas da manhã. Tem dia que eu treino sete horas seguidas, faço 60/70 km. Depois volto e vou trabalhar. Mas o legal é que eu tenho grandes descobertas. Digo que quando eu tenho um tênis no pé e dois bastões na mão, eu vou longe! A cada dia estou num local treinando, descobrindo como o Brasil é lindo, como a nossa natureza é maravilhosa. É de tirar o fôlego! Quanto mais alto, mais dificuldade a gente tem para subir, mais bela é a paisagem que você vai encontrar no cume da montanha.
Sabine: Quais são os principais elementos que você considera ao escolher suas provas de trail run?
Giovanna: Quando eu vou escolher uma prova, eu tenho que ter um objetivo, e um deles é ajudar as pessoas. Vou para a França para ser voluntária na UTMB, para ajudar o corredor que treinou o ano todo para dar o seu melhor, e para criar laços e ser parceiro do país, porque tenho um sonho de trazer uma pista escola para o Brasil, onde a criança vai treinar e estudar. Então, todo passo que eu dou no esporte hoje, é preencher essa paixão que eu tenho pelo atletismo que me desafia. Tento levar uma mensagem, fechar algum apoio, alguma parceria para ajudar as crianças do meu projeto, ou alguma outra entidade.
Sabine: Como você se prepara mentalmente para as corridas de trail run? Existem estratégias específicas que você utiliza para lidar com os desafios mentais durante as provas?
Giovanna: A parte psicológica para mim é 99%. Eu descobri isso na minha primeira maratona, quando passei mal. Para a segunda, que seria a minha prova alvo, a Maratona da Disney, eu comecei a aprender a treinar em hipnose e trabalhar a mente. Então quando chegava os últimos quilômetros, eu simulava provas dentro da prova, e os demais quilômetros eu terminava em hipnose. Então me concentrava a partir daquele momento. Não existia mais nada para mim. A hipnose é uma coisa que me ajuda muito. Tenho muita fé, meus momentos de orações, que vão ficando cada vez mais forte. Na véspera de prova, gosto de assistir os vídeos do Ayrton Senna, que eu sou superfã. Ele deixou um legado de superação. Também gosto de brincar de joguinho de celular ou na televisão. Eu tenho que chegar até a fase 10. Mas se eu passar da fase 5, eu sei que eu estou bem concentrada para o desafio. Eu vejo tudo até três dias antes da prova, depois só me concentro e não mexo mais nada relacionado, tento pensar só em coisas boas até o final da prova, e é isso que me leva até a chegada. Eu falo que eu corro com a frieza de um cientista, e cruzo a linha de chegada com a emoção de um artista. Eu danço, pulo, grito, comemoro, porque não é fácil ser atleta nesse país, superar os limites. Não foi fácil superar minhas deficiências. Mas estou praticando o que eu gosto e para mim, chegando em último, mas dando o meu melhor, é uma alegria. E quando atinjo meus grandes objetivos, aí é emoção pura.
Sabine: O que mais te motiva e te incentiva a continuar nos treinos firme e forte?
Giovanna: Eu sempre tenho um sonho, um objetivo para atingir. Sempre estou com uma prova engatilhada. Já estou pensando em atingir o cume do Everest, e fazer um Ironman como participação, porque o ciclismo é minha paixão também. Eu tenho um sonho de ter uma medalha do Ironman. Mas agora é competir no Mundial em 2025, e depois vou encerrar minha carreira competitiva! O que me motiva mais é essa benção que Deus me deu. Estar com 40 anos, com mais de 35 no esporte, ainda conseguindo treinar e competir sem ter nenhuma cirurgia, sem ter nenhuma lesão grave. É Deus abençoando a minha vida todos os dias.
Sabine: Como é a sua semana de treinos? Como concilia a sua carreira de atleta com outros aspectos da sua vida, como trabalho e família?
Giovanna: Eu tenho meus dias todos programados. Acordo entre 3 e 5 horas da manhã todos os dias. Treino de manhã, trabalho, descanso, almoço, trabalho em casa, treino. Meu marido me ajuda muito, é meu braço direito. Tem dias que estou com a lanterninha na cabeça e ele está me acompanhando, com o farol ligado. Tem um grupo de professores que trabalha comigo que me auxilia nos trabalhos, meus alunos e bons amigos que me dão força! Eu tenho um estúdio onde sou coordenadora, dou aula, avalio alunos, atendo personal em condomínios, trabalho na assessoria de corrida onde uma vez por semana vou em todos os polos. Sou embaixadora e professora do Projeto Sementinha. Sou Rotariana. O principal para mim é amar e servir ao próximo. Então eu quero me dedicar às pessoas, seja com a minha profissão ou como voluntária, dando exemplos dentro do esporte.
Sabine: Como é o trabalho no Projeto Sementinha que você criou?
Giovanna: O Projeto Sementinha é para alunos entre 6 e 17 anos e já vai fazer 10 anos, em agosto. Algumas crianças recebem a bolsa de incentivo e tenho alguns amigos solidários que me ajudam com a parte financeira e às vezes doação de tênis. Eu dedico todo mês, 5% do meu salário para esse projeto. Se o aluno não se tornar atleta, a gente indica para o mercado de trabalho. Temos uma parceira onde eles têm a oportunidade do Menor Aprendiz, fazendo cursos dentro da empresa e trabalham um período. O nosso projeto exige que a criança esteja estudando. É um projeto que a gente tenta mostrar o caminho do esporte com boa oportunidade, seja ele como atleta ou para educar para a vida.
Sabine: Qual seu próximo objetivo no trail run? Alguma prova foco ainda este ano?
Giovanna: O meu próximo objetivo é repetir a prova da MCC – UTMB Mont Blanc, viajo dia 24 de julho para a França e fico até dia 3 de setembro. A prova é dia 28 de agosto! Espero fazer um bom resultado para o Brasil. Depois vou fazer a UTMB Parati (24/09) e em seguida vou fazer a Maratona da NASA, no asfalto. Estou com saudades dos Estados Unidos.
Sabine: O Trail Run tem crescido muito no Brasil e no mundo. O que você acredita que tem feito muitos corredores migrarem para as trilhas e montanhas?
Giovanna: A correria do dia a dia, todo mundo corre contra o tempo, o trânsito, as poluições sonora e visual! Então você chega na natureza e vê aquelas paisagens de tirar o fôlego, aquele som dos pássaros, fora a socialização também que é uma característica das provas de montanha, um ajuda o outro. Eu acho que é isso que vem fazendo esse mundo do trail crescer. As pessoas estão migrando bastante e no Brasil vem crescendo muito, embora perto dos países europeus ainda está gatinhando, mas tende a crescer mais. As mulheres estão vindo com tudo! É o hormônio do bem, para a cabeça. Tem a questão do medo, que muita coisa você supera na corrida. Então vale a pena, eu torço muito, e vestindo essa camisa do trail.
Sabine: Que dica você dá para quem está começando no trail run, ou busca performance nas corridas de trilhas e montanhas?
Giovanna: Para quem quer migrar para o trail, identifique qual é o tipo de calçado, mochila, todo material que faz a diferença. Procurar um treinador que seja especialista em corrida trail. Fazer uma avaliação física do coração, do pulmão. No ano passado eu descobri que tenho fibrose no pulmão, então eu me programo para chegar no mínimo uma semana antes na altitude, ou ir treinando pelo menos a uma atitude em 1300m para não ter esse acúmulo de líquido no pulmão. E claro, aos pouquinhos ir aumentando a distância e não tentar logo uma prova longa. No ITRA, por exemplo, existe a exigência de inscrições em competições determinadas para pontuar, até por conta da segurança, quanto mais pontuação, mais a pessoa tem experiência. Se for sair para trilha leve sempre material de segurança, de emergência, apito, manta térmica, corta vento, alimentação. No trail eu como até macarrão no meio da prova. Ter uma nutricionista que entenda sobre alimentação para a corrida, e sempre hidratar muito. Se sentiu sede, é porque já está desidratado. E digo mais uma coisa: “Vem pro trail, que você não vai se arrepender”.
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