Atletas da Vida Real

Cultura nacional, resiliência e câimbra

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Desde criança nos orgulhamos em dizer que “somos brasileiros e não desistimos nunca”. O ditado popular define a resiliência de uma nação que insiste em lutar sem deixar de ser feliz, mesmo frente às dificuldades diárias, mas também poderia ter sido usado como lema para nós, corredores. Pare por cinco minutos na linha de chegada de uma prova de corrida e assista a chegada dos atletas para entender exatamente o que estou falando. Pessoas normais, como eu e você, profissionais de diversas áreas que se desafiam em longas distâncias, abrindo mão de tempo de lazer, de estar com a família e amigos, de descanso e tantas outras coisas que optamos por deixar de lado para chegar em um domingo de manhã com outros milhares de corredores, acordar cedo, correr por horas, sentir dores e mesmo assim não desistir. Esses somos nós, corredores brasileiros.

Embora possa não parecer, sentir dor é algo muito positivo. É assim que nosso cérebro nos avisa que algo está errado, nos dando tempo para tomar alguma decisão antes que seja tarde demais. Nosso corpo é tão inteligente que, caso a dor seja insuportável, mecanismos de liberação hormonal (ou até de desmaio, em casos extremos) serão acionados para que possamos sofrer menos.

Resistência à dor e resiliência

O pesquisador sul africano Tim Noakes, um dos maiores cientistas do mundo em esportes de endurance, fala muito sobre a teoria do Governador Central (GC). Segundo ele, uma pequena área do nosso cérebro está constantemente nos monitorando com um único objetivo: evitar nossa morte. Para facilitar o entendimento, vou dar um exemplo:

Imagine que você sai de casa para fazer um treino intervalado de corrida. Embora seja meio dia, no pico do verão, o céu está cheio de nuvens e você consegue fazer um aquecimento muito tranquilo, sentindo-se confortável. Porém, quando você acaba o primeiro tiro de 1km percebe que todas as nuvens foram embora, a temperatura sobe abruptamente, e você ainda tem 9 estímulos de 1km para fazer. No terceiro tiro a temperatura central do seu corpo começa a subir, e o GC fica em alerta. No quinto tiro seu cérebro entende que a situação está ficando crítica, e começa desligar alguns músculos para que você pare de gerar calor, mas você insiste em continuar o treino, mesmo que tenha que se esforçar mais para isso. Incrédulo da sua resiliência, no oitavo tiro o GC baixa sua pressão e faz com que você se sinta enjoado, na esperança que você finalmente desista, já que nesse momento seus órgãos vitais estão superaquecidos e podem ter danos realmente sérios. Antes de fazer no último ataque de 1km, você passa pela praia, toma um banho de água gelada e resfria seu corpo. O GC entende que o perigo passou, e para de tentar te fazer parar de correr.

O mais interessante é que, conforme você vai passando por essas situações, seu Governador central vai ficando mais flexível, entendendo que aquele momento não é tão agressivo assim, e te deixando arriscar um pouquinho mais. Ou seja, quanto mais você sofre em treinos e provas, mais resiliente se torna. Em seu livro “Endure”, Alex Hutchinson cita um estudo onde os pesquisadores separaram dois grupos, um de corredores e um de não corredores, e pediram para ambos colocarem a mão em um balde com água e gelo, e mediram duas coisas:

– Tempo que os participantes aguentavam com a mão no balde;

– Nível de dor de 0 a 10.

Ao final, os cientistas concluíram que os corredores conseguiram aguentar com a mão na água por mais tempo, e também relataram menor percepção de dor durante o processo, sugerindo que, por sofrer muito nos treinos, atletas tendem a lidar melhor com a dor.

Câimbra

Mesmo que você consiga lidar bem com a dor, algumas delas podem ser incapacitantes, como as câimbras, por exemplo. A grande maioria dos corredores de longa distância já sentiu esse desconforto em algum momento, que inicia leve, e vai evoluindo até que a contração involuntária seja tão intensa que você não consiga mais correr.

É normal ouvirmos corredores comentando que as câimbras podem acontecer por desidratação, assim como também é tradicional vermos atletas ingerindo cápsulas de sal e bebidas esportivas que prometem repor os eletrólitos durante a atividade física e evitar câimbras. Um grupo de pesquisadores espanhóis, porém, levantou a hipótese de que a câimbra esteja mais associada com o desgaste muscular do que à desidratação ou falta de eletrólitos, e fizeram um artigo sobre isso. Participaram do estudo 98 corredores (83 homens e 15 mulheres) que correram a Valencia Trinidad Alfonso EDP 2016 Marathon. Todos tinham entre 30 e 45 anos, e completaram a prova entre 3:00 e 4:00h (homens) e 3:30 e 4:30h (mulheres).

Além de um questionário sobre o treinamento de força e corrida, os participantes fizeram um teste incremental em esteira para determinar as velocidades máximas e submáximas. Antes e depois da prova mediram a hidratação através da urina. Marcadores de dano muscular sanguíneo (LDH e CK) foram analisados no dia anterior, logo depois da prova e 24h após a maratona, assim como sódio e potássio. Logo após cruzarem a linha de chegada, um dos pesquisadores perguntava se o atleta havia sentido câimbras durante ou ao final da prova.

Do total de atletas estudados, 24% tiveram câimbras durante ou logo após a prova. O resultado do estudo indicou que os níveis de hidratação e de sais de todos os atletas, tanto os que sofreram com câimbras quanto os que não sentiram o desconforto estavam muito parecidos, sem diferenças significativas. O que ficou evidente, porém, foi a alta concentração de LDH e CK no sangue dos atletas que tiveram câimbra, indicando que o dano muscular nesse grupo foi muito maior, nos dando a entender que a câimbra foi totalmente relacionada com o maior desgaste muscular, e não com desidratação ou falta de eletrólitos.

Sou brasileiro e não desisto nunca, mas…

Mesmo que você seja brasileiro e não desista fácil das coisas, na corrida o que vai ajudar de verdade é ter uma rotina consistente de treinos. É isso que vai te fazer ser mais resiliente, aguentando o desconforto por mais tempo e sentindo menor desconforto nesses momentos, tranquilizando e facilitando a vida do seu Governador Central. Também é com volume de treino e fortalecimento muscular que você vai ter músculos mais preparados para encarar milhares de passadas de uma corrida.

Espero que esse texto tenha te ajudado a refletir sobre seus treinos e como você encara seus desafios! Que setembro seja um mês especial para nós, brasileiros!

Por: Alex Tomé

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